29.8.06

Letra X

Um pé a seguir ao outro leva-me para um sítio impensável.
Sinto uma força, que me empurra, sinto-a nas costas, sinto-a no sítio onde acabam as calças, de ganga, como sempre. Logo acima do cinto, sinto algo que me empurra.
Duas forças fixas nos dois declives das minhas costas. Sinto-as a entrar para dentro, cada vez mais.
As minhas costas, a minha pele fora da carne, dois buracos, para dentro. Por onde uma tal força de intensidade x e direcção y me é aplicada. A inércia anula-se, ela que já estava tão enterrada no meu corpo morto.
Movo-me. Um pé depois do outro e antes do outro.
Quase que ouço as pedras beges e azuis desmaiadas do chão a queixarem-se por terem de suportar o meu peso cadavérico.
Assaltam-me perguntas filosóficas básicas: quem sou, para onde vou.
Não recorro a respostas. Deixo-me arrastar por essa tal força com componentes x e y.
Nunca gostei muito de física.
A matemática é-me mais querida.
Por momentos traço a minha trajectória com a esperança de desenhar, mentalmente, uma figura geométrica completamente inútil. Mas já me arrastei demasiado, é impossível perceber onde comecei. Sei apenas que algo nas minhas costas me guia e me empurra.
Sinto-me perdida e a vaguear.
Não sei onde estás.
Enquanto escrevo isto lembro-me da tua mão, a escrever o meu segundo nome. Sempre achei piada à forma como desenhas os “Ss”. De baixo para cima. Desde que te conheci o “X” ficou marcado no meu peito e na minha pele.
Agora sinto dois pontos nas costas. Não dois pontos um em cima do outro, mas um a seguir ao outro.
Relembro as nossas horas de dois pontos, tal como nos textos.
Dois pontos eu e tu. Paragrafo.
Não quero mudar de assunto.
Não quero que te vás. Se fores volta. Segue o gemido das pedras que piso sem piedade, e o ranger do alcatrão.
Não esperes o toc toc dos meus saltos, só os volto a calçar para ti.
Irás com destino para a minha terra prometida, esperarás por mim. Tal como esperarei por ti.
Um numero infindável de “ate jás”.
Sabes o que sinto e por quem sinto.
Vais voltar, nem que seja para me dizeres como é. Como é a minha terra prometida.
Quero visitar-te lá. E libertar-me.
Pois tu és o único que me conhece bem. Conheces todos os meus lados, vistos de muitos prismas.
E esperarei. Porque te amo. Esperarei a vaguear pelo meu mundo onde te escrevo.

10.8.06

Pura descrição

Hoje passei a noite em cemitérios.
Era Novembro, havia uma feira. Vendiam-se santos, roupa, calçado e tudo o que se pode imaginar.
Uma feira com santos pequenos de barro e plástico. Uma feira com santos, dentro do cemitério com santos, campas de mármore em pintas frias, terra podre, de ossos, carne e passado, e cadáveres.
Era Novembro, as flores e velas que arderam e secaram até à exaustão, eram agora também cadáveres, em cima de cadáveres. Cadáveres que tinham sido depositados em cima de outros cadáveres de pais e avós, de mães e tias.
Tudo era podre.
As pessoas que por lá passavam tinham o coração podre, em pedaços.
A terra, os corpos, os corações. As flores. Tudo era podre.
O oxigénio degradava-se e extinguia-se. Dava voltas nos meus pulmões e em todos os pulmões de quem foi ao cemitério.
Era Novembro, de tarde. O padre entrava, a feira já tinha acabado, restavam apenas algumas barracas, onde os artigos já tinham sido encaixotados.
E o padre disse: descansem em paz. Ámen.
Dentro de mim algo se riu.
Cadáveres, descansem em paz. Cadáveres podres, descansem em paz. Cadáveres aprisionados em caixões, descansem em paz. Cadáveres com metros de terra em cima, descansem em paz.
Tudo me pareceu absurdo, cada letra que saia daquela boca era absurda.
Mas o padre ficou lá alguns minutos. Visitou a parte nova e a parte velha do cemitério. Enquanto eu voava por cima das campas em voos rasos e depois mais altos.
O padre saiu. Eu voei, por cima de um grande muro, onde mais ninguém conseguia subir, e vi o padre. Entrava por uma grande porta de madeira velha, escurecida e barulhenta.
Eu via-o do muro, ele não me via. E ele disse: Ámen. E fechou a porta como se fugisse.
Tudo o que eu via, era o cemitério velho, ou antigo. Tinha um tecto, e nunca ninguém lá entrava. Meia dúzia de campas, algumas dezenas de corpos, famílias inteiras apodreciam na junção no lar, para mim era uma aldeia, onde famílias inteiras moravam.
Desci o muro, de volta ao cemitério novo, que tinha a parte nova e a parte velha. Saí.
Ao entrar na igreja vi uma grande porta. Abri-a com esforço. Estava agora numa espécie de corredor, vazio, nem uma gota de pó, nem uma gota de nada. Apenas três portas, uma em frente, uma à esquerda e outra à direita. Eram todas igualmente belas e gigantes.
Escolhi a da frente, por parecer estar mais nova. Lá estava ele. O cemitério velho.
Toda a paz do mundo se abateu sobre mim. O meu corpo era a paz dentro da paz, a pisar aquele chão antigo.
Avancei. Tudo era estranho e chamativo. Eu com aqueles cadáveres debaixo dos meus pés. Eu sozinha.
As campas eram muito largas e compridas, pareciam grandes camas de família, com muitas almofadas a cobri-las, algumas já não se distinguiam muito bem. Não era a chuva, nem o vento que as transformava, era o bafo que vinha debaixo. Sentia-o nos meus pés.
O cemitério antigo era coberto, com um telhado transparente. Não sei se de vidro.
O cemitério antigo era como todos os outros, um depósito de cadáveres.
O cemitério antigo tinha almofadas, almofadinhas e almofadões. E grandes camas de família.
O cemitério antigo estava assim descoberto e respirado. Tudo lá era passado. E o tecto do meu quarto o futuro.
Tinha acabado o sonho.

5.8.06

Preto e Branco Trivial.

Olho-me nos olhos.
Em frente ao espelho, que não é mais que estilhaços aguçados.
Aranhas com garras, que me perfuram a alma, fazem ninho na minha memória.
A sala onde te guardo permanece fechada, a 6 chaves.
Um dia fugiste-me.
Deixaste para trás a tua escova, de onde pendiam fios de cabelo negro. Quase como os das aranhas, mas opostos. Preto e Branco.
Volto à sala, ainda lá estás, o movimento da tua nuca, arrastando milhões de fios, que entrelaço em fragmentos de vida. Os fios. Preto e Branco. O retrato, que te tirei, só tu e o teu cabelo negro, comprido, que te cortava o olhar, em pequenas tiras com poucos milímetros de espessura. De novo à vida. Preto e Branco. A sala e o resto da casa.
Quando partis-te sem olhar para trás, derreada com o peso de uma existência em comum e alguns trapos, vi os teus olhos. Vi-os a olhar para mim. Como se olhassem por eles próprios, sem o teu consentimento. Como um livro de imagens.
O conto de fadas acabou. Um dia fomos o Céu e a Terra, o Príncipe e a Princesa. A utopia e a banalidade de histórias manchadas a rosa descolorou.
Passamos para a Bela e o Monstro, mas a palidez da nossa história foi maior e mais amarga.
Do nosso rosa excessivo, quase resultou um menos intenso.
Mas a tua barriga não aguentou, ou tu e eu não aguentámos, ou esse rosa nunca pudesse existir.
Estavas linda, naquele inchaço que dizem iluminar. Mas tudo se foi. Uma vida a três, um molho de sacrifícios, e um grande elástico nos nossos bolsos.
Tudo isso se foi, na alegria fantasmagórica e assustada de dois punhados de anos, insuficientes para criar, e preparados para amar.
Naquela manhã, um rio encarnado assassinou o nosso sono agarrado e apaixonado.
Pressa, a adrenalina disparou, o tilintar das teclas do telefone, pessoas, luzes. Depois objectos de inox, de novo o Branco. No fim o Preto. Preto e Branco. Como o chão que agora percorro para ir trabalhar.
Por cada Branco envelheço. Por cada Preto morro um pouco mais.
Talvez te lembres.
De novo o Preto e o Branco no álbum de família quando pela primeira vez os meus pais te viram.
Um jantar solene e sequioso, como sempre.
Aquele vinho que bebeste sem pensar. Terá sido dos nervos? Os meus pais, educados e cínicos, sorriam para ti. Ao mesmo tempo que me empurravam para a vizinha.
Era feia, gorda, com os dentes amarelos. Um ser apático o qual eu tinha a certeza que nascera sem alma.
Vestia roupas curtas e apertadas, que lhe descobriam as formas. Demasiado redondas e cheias. Como a conta da família.
Os meus pais nada sabem de amor ou felicidade. Nasceram de aliança no dedo. E para eles eu deveria nascer com um canudo com algo do género: "formado em medicina". Nasci. Cresci. A aliança com que sai das entranhas da minha mãe foi derretida pelo teu calor e o canudo, serviu de filtro para charros inspirados, que consumi com alguns amigos da escola.
Sai de casa e cultivei calos para comer.
Mas tu já estavas na minha estrada, já eras parte e o verdadeiro sentido desta liberdade imposta.
Naquele jantar, bebeste, a tua voz tinha um som bêbedo e descontrolado.
Conduzi-te até casa, à tua casa, à minha, à nossa casa.
Pelo caminho discutimos, algo estúpido. Ciúmes, acho eu.
Mas tudo se dissipou em mares de suores quentes e frios. Na luz prateada das 3 da manhã.
Uma vida. Preto e Branco.
Eu e Tu. Uma casa.
Tudo isso colado agora no espelho quebrado da tua sala.
Às vezes vou lá, visito-te. Uma visita de médico, como a minha mãe queria que eu fosse, e saio.
Mil pedaços de espelho cobrem o chão da sala, percorro-a, sem lhes tocar.
A sala é tua.
Quando voltares e se voltares tudo estará como dantes.
Nada será como dantes.
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