10.8.06

Pura descrição

Hoje passei a noite em cemitérios.
Era Novembro, havia uma feira. Vendiam-se santos, roupa, calçado e tudo o que se pode imaginar.
Uma feira com santos pequenos de barro e plástico. Uma feira com santos, dentro do cemitério com santos, campas de mármore em pintas frias, terra podre, de ossos, carne e passado, e cadáveres.
Era Novembro, as flores e velas que arderam e secaram até à exaustão, eram agora também cadáveres, em cima de cadáveres. Cadáveres que tinham sido depositados em cima de outros cadáveres de pais e avós, de mães e tias.
Tudo era podre.
As pessoas que por lá passavam tinham o coração podre, em pedaços.
A terra, os corpos, os corações. As flores. Tudo era podre.
O oxigénio degradava-se e extinguia-se. Dava voltas nos meus pulmões e em todos os pulmões de quem foi ao cemitério.
Era Novembro, de tarde. O padre entrava, a feira já tinha acabado, restavam apenas algumas barracas, onde os artigos já tinham sido encaixotados.
E o padre disse: descansem em paz. Ámen.
Dentro de mim algo se riu.
Cadáveres, descansem em paz. Cadáveres podres, descansem em paz. Cadáveres aprisionados em caixões, descansem em paz. Cadáveres com metros de terra em cima, descansem em paz.
Tudo me pareceu absurdo, cada letra que saia daquela boca era absurda.
Mas o padre ficou lá alguns minutos. Visitou a parte nova e a parte velha do cemitério. Enquanto eu voava por cima das campas em voos rasos e depois mais altos.
O padre saiu. Eu voei, por cima de um grande muro, onde mais ninguém conseguia subir, e vi o padre. Entrava por uma grande porta de madeira velha, escurecida e barulhenta.
Eu via-o do muro, ele não me via. E ele disse: Ámen. E fechou a porta como se fugisse.
Tudo o que eu via, era o cemitério velho, ou antigo. Tinha um tecto, e nunca ninguém lá entrava. Meia dúzia de campas, algumas dezenas de corpos, famílias inteiras apodreciam na junção no lar, para mim era uma aldeia, onde famílias inteiras moravam.
Desci o muro, de volta ao cemitério novo, que tinha a parte nova e a parte velha. Saí.
Ao entrar na igreja vi uma grande porta. Abri-a com esforço. Estava agora numa espécie de corredor, vazio, nem uma gota de pó, nem uma gota de nada. Apenas três portas, uma em frente, uma à esquerda e outra à direita. Eram todas igualmente belas e gigantes.
Escolhi a da frente, por parecer estar mais nova. Lá estava ele. O cemitério velho.
Toda a paz do mundo se abateu sobre mim. O meu corpo era a paz dentro da paz, a pisar aquele chão antigo.
Avancei. Tudo era estranho e chamativo. Eu com aqueles cadáveres debaixo dos meus pés. Eu sozinha.
As campas eram muito largas e compridas, pareciam grandes camas de família, com muitas almofadas a cobri-las, algumas já não se distinguiam muito bem. Não era a chuva, nem o vento que as transformava, era o bafo que vinha debaixo. Sentia-o nos meus pés.
O cemitério antigo era coberto, com um telhado transparente. Não sei se de vidro.
O cemitério antigo era como todos os outros, um depósito de cadáveres.
O cemitério antigo tinha almofadas, almofadinhas e almofadões. E grandes camas de família.
O cemitério antigo estava assim descoberto e respirado. Tudo lá era passado. E o tecto do meu quarto o futuro.
Tinha acabado o sonho.

5 Comments:

Blogger saisminerais said...

Quando a mente nos tenta mostrar durante o sono o que a vida nos oculta enquanto andamos acordados!
Será o faz para nos assustar? Será que nos quer acordar? Ou simplesmente estará ligado a um passado vivido numa vida anterior!
Segredos que depois de desvendados
pderiam ser bem prejudiciais... O interpretar um sonho, tarefa praticada por uns e indesejada por outros, possuidores de uma mente muito sensivel! O que importa?
Descrever um sonho na sua totalidade denota que a pessoa que o faz o viveu muito intesamente...
Ainda bem que o tecto do quarto lá estava quando acoedaste e te fez sentir de novo viva e acordada, te transportou de novo para o futuro.
Descreves ao pormenor vivencias de um sonho que lido por mim, confeço que ao principio parecia morbido e aterrador, suspirei de alivio quando cheguei ao fim, porque acordei contigo.
Parabens gostei
Beijos do teu amigo

sexta-feira, 11 agosto, 2006  
Blogger Luigi said...

Um texto destes merece mais comments, estás de parabéns! Pura e sombria descrição, gostei muito

beijos

domingo, 13 agosto, 2006  
Blogger Vampiria said...

Entao menina, dá-nos mais textos, mais textos. essa do cemitério ter almofadas... hmmm, pode parecer brincadeira, mas é o nosso último repouso...! beijo

quarta-feira, 23 agosto, 2006  
Blogger Sá Reis said...

Este comentário foi removido pelo autor.

quinta-feira, 19 novembro, 2009  
Blogger Sá Reis said...

Normalmente os meus sonhos terminam quando começam a ficar confusos.
Acordo atordoado e fico contente por terminar a confusão.
Na tua descrição do cemitério ficamos, envolvidos numa penumbra, á espera de ver um morto a sair e outro a apanhar os dentes do chão... mas não; tudo é podre e descansa em paz.
Simplesmente maravilhoso. Gosto muito de te ler porque és muito transparente.
Beijinhos.

quarta-feira, 25 novembro, 2009  

Enviar um comentário

<< Home

Amazon.com Coupons