5.8.06

Preto e Branco Trivial.

Olho-me nos olhos.
Em frente ao espelho, que não é mais que estilhaços aguçados.
Aranhas com garras, que me perfuram a alma, fazem ninho na minha memória.
A sala onde te guardo permanece fechada, a 6 chaves.
Um dia fugiste-me.
Deixaste para trás a tua escova, de onde pendiam fios de cabelo negro. Quase como os das aranhas, mas opostos. Preto e Branco.
Volto à sala, ainda lá estás, o movimento da tua nuca, arrastando milhões de fios, que entrelaço em fragmentos de vida. Os fios. Preto e Branco. O retrato, que te tirei, só tu e o teu cabelo negro, comprido, que te cortava o olhar, em pequenas tiras com poucos milímetros de espessura. De novo à vida. Preto e Branco. A sala e o resto da casa.
Quando partis-te sem olhar para trás, derreada com o peso de uma existência em comum e alguns trapos, vi os teus olhos. Vi-os a olhar para mim. Como se olhassem por eles próprios, sem o teu consentimento. Como um livro de imagens.
O conto de fadas acabou. Um dia fomos o Céu e a Terra, o Príncipe e a Princesa. A utopia e a banalidade de histórias manchadas a rosa descolorou.
Passamos para a Bela e o Monstro, mas a palidez da nossa história foi maior e mais amarga.
Do nosso rosa excessivo, quase resultou um menos intenso.
Mas a tua barriga não aguentou, ou tu e eu não aguentámos, ou esse rosa nunca pudesse existir.
Estavas linda, naquele inchaço que dizem iluminar. Mas tudo se foi. Uma vida a três, um molho de sacrifícios, e um grande elástico nos nossos bolsos.
Tudo isso se foi, na alegria fantasmagórica e assustada de dois punhados de anos, insuficientes para criar, e preparados para amar.
Naquela manhã, um rio encarnado assassinou o nosso sono agarrado e apaixonado.
Pressa, a adrenalina disparou, o tilintar das teclas do telefone, pessoas, luzes. Depois objectos de inox, de novo o Branco. No fim o Preto. Preto e Branco. Como o chão que agora percorro para ir trabalhar.
Por cada Branco envelheço. Por cada Preto morro um pouco mais.
Talvez te lembres.
De novo o Preto e o Branco no álbum de família quando pela primeira vez os meus pais te viram.
Um jantar solene e sequioso, como sempre.
Aquele vinho que bebeste sem pensar. Terá sido dos nervos? Os meus pais, educados e cínicos, sorriam para ti. Ao mesmo tempo que me empurravam para a vizinha.
Era feia, gorda, com os dentes amarelos. Um ser apático o qual eu tinha a certeza que nascera sem alma.
Vestia roupas curtas e apertadas, que lhe descobriam as formas. Demasiado redondas e cheias. Como a conta da família.
Os meus pais nada sabem de amor ou felicidade. Nasceram de aliança no dedo. E para eles eu deveria nascer com um canudo com algo do género: "formado em medicina". Nasci. Cresci. A aliança com que sai das entranhas da minha mãe foi derretida pelo teu calor e o canudo, serviu de filtro para charros inspirados, que consumi com alguns amigos da escola.
Sai de casa e cultivei calos para comer.
Mas tu já estavas na minha estrada, já eras parte e o verdadeiro sentido desta liberdade imposta.
Naquele jantar, bebeste, a tua voz tinha um som bêbedo e descontrolado.
Conduzi-te até casa, à tua casa, à minha, à nossa casa.
Pelo caminho discutimos, algo estúpido. Ciúmes, acho eu.
Mas tudo se dissipou em mares de suores quentes e frios. Na luz prateada das 3 da manhã.
Uma vida. Preto e Branco.
Eu e Tu. Uma casa.
Tudo isso colado agora no espelho quebrado da tua sala.
Às vezes vou lá, visito-te. Uma visita de médico, como a minha mãe queria que eu fosse, e saio.
Mil pedaços de espelho cobrem o chão da sala, percorro-a, sem lhes tocar.
A sala é tua.
Quando voltares e se voltares tudo estará como dantes.
Nada será como dantes.

5 Comments:

Blogger saisminerais said...

Um retrato negro de uma vida a preto e branco onde uma paixão sobressai e de desvaira num caso perdido onde a saudade fica...
A tua história! Talvez.
Mas um texto intenso e cheio de conteúdo.
Com um beijo do teu amigo

sábado, 05 agosto, 2006  
Blogger Vampiria said...

Parece que engulo a seco o que escreves... o que vives escrevendo é lindissimo. Diz me por favor qual o blog onde agora escreves e actualizas. Um abraço para um mente especial.

quinta-feira, 10 agosto, 2006  
Blogger Telma* said...

Muito obrigada. É com ternura e humildade que aceito os elogios e também as criticas.

Estou também em www.soliloquio.tk está nos links.

obrigada e um beijo

quinta-feira, 10 agosto, 2006  
Blogger Vampiria said...

andaste a passear alegremente pelo meu blog, já vi, ehehehe :)) espero que tenhas gostado, vou linkar o teu blog luz... para negro já basta o meu.

quinta-feira, 10 agosto, 2006  
Blogger . said...

em vez de escrever aqui algo prefiro "falar" contigo mas que fique salientado que gostei

quinta-feira, 12 outubro, 2006  

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